terça-feira, 16 de julho de 2013

A Ilha Grande por detrás da Ilha: os meninos da vida.


Texto e fotos: Katia Peixoto dos Santos.


    Várias vezes, se procurado, seria encontrado plantado em alguma pizzaria da Torpignattara, da borgata Alessandrina, da Torre Maura ou de Pietralata, enquanto em uma folha de papel anoto expressões idiomáticas, pontos expressivos ou vivazes, gírias ouvidas em primeira mão da boca dos “falantes” feitos falar de propósito. Isto, naturalmente, acontece em ocasiões específicas. Por exemplo, a um certo ponto da narrativa, uma das minhas personagens rouba uma pasta ou alguma bolsa: existe uma gíria para indicar pasta ou bolsa? Como não! Pasta se diz cricca, bolsa campana: A negação em geral, além de morto, se diz riboncia etc. (Ao invés de dizer etc, ou coisas do gênero, no meu romance colocarei sempre e tanti benedetti, quando um não menos vivaz e tante belle cose).Nem sempre esse material instrumental em nível baixíssimo e particularíssimo transcrevo diretamente: O faço somente nos casos nos quais me apresente uma dificuldade ou uma necessidade estilística na mesa, enquanto escrevo tudo sozinho. (PASOLINI, 1983, p. 212).

Um menino de aproximadamente seis anos estava sozinho comprando pão na padaria para ele e sua mãe. Ele tinha dinheiro suficiente para os pães mas na vitrine o pão comum, àquele que o menino precisava e tinha de comprar, nem estava lá. Na vitrine, se oferecendo com persuasão estavam  doces coloridos e sedutores, doutro lado salgados, lustrosos, dourados, salgados e gordurosos. O menino,  sem dinheiro e sem permissão da mãe para comprá-los não teve dúvida pediu para uma cliente alguns salgados, pondo rapidamente uma carinha de coitado.  A mulher calmamente respondeu: Você mora perto? Então vá a sua casa e peça permissão à sua mãe, se ela permitir eu compro. O menino, talvez já sabendo que não poderia fazer aquilo, desistiu dos doces e salgados e levou os pães de sal para ele e a mãe. O caixa da padaria  comentou: É assim todos os dias......
Noutro dia, nas imediações da padaria do primeiro menino,  na porta de um mercado, vi uma mãe com três filhos, parada e olhando um deles se estrebuchar  no chão  fazendo birra para que ela comprasse coisas e mais coisas gostosas de comer. Do outro lado, avistei alguns garotos que comemoravam ao anoitecer o fim das aulas e o inicio das férias. Ainda com mochilas nas costas, eles pulavam e se jogavam na areia com tranquilidade sujando, sem pudores e culpas,  as roupas e calçados escolares.
Estava em Ilha Grande, lindo lugar localizado em Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Sua beleza é evidentemente por conta da natureza exuberante e que, aparentemente, ainda está conservada. Como deve ser para esses meninos da ilha viverem com essa invasão, aparentemente necessária, de turistas que consomem tudo aquilo que eles não possuem mas que de várias formas estão escancarados em seus olhos e narinas.... ? Ver tantas coisas gostosas e fascinantes como comidas, roupas, lanchas? Como vivem com o estrangeirismo?

Uma canoa  largada na praia....

Uma lancha trabalha no mar...
Evidente , o que ocorre na Ilha Grande acontece todos os dias por esse mundão de meu deus em inúmeros lugares distintos, esses meninos que fazem o cenário como figurantes existem além da peça teatral ou fílmica, eles vivem às dores e os anseios de serem de onde são e de serem o que são em suas entranhas maléficas, carentes e bondosas.... Além do vento do mar, da areia da praia eles existem e estão lá escondidos e desapercebidos por todos. Quando todos se vão eles ficam para recolherem o que sobrou e ansiarem com a volta “deles”, os estranhos, ex acústicos e encantadores: outros....
Eu estava lá na categoria de “outros”, turista, e como tal me encantei com o lugar e também nada fiz para que qualquer coisa ali mudasse, pois todos nós sabemos que a maior parte de todo aquele capital acumulado e conseguido na ilha não reverte aos moradores e sim serve para dar lucro aos donos das pousadas, dos iates, das  lanchas, dos barcos e que, em sua maioria são estrangeiros que resolveram morar no Brasil  para abrirem seus negócios. E também sabemos que políticos corruptos e bicheiros  usam a ilha para desfrutarem e ao mesmo tempo se escondem sem se preocuparem nem um pouco com esses meninos.  Nada contra os estrangeiros que agora são moradores da Ilha e que impulsionaram o turismo local, pieguices à parte mas o modelo social do Brasil é uma merda....  Quanto desse capital deveria ir para a educação, saúde, moradia, saneamento básico, não só da Ilha mas de todo o Brasil? Quanto desse capital deveria ser investido em pesquisas nas Universidades vislumbrando soluções de problemas da biodiversidade e afins?
Não estou aqui para contar a história da Ilha Grande, recheada de tristezas e desgraças pois não me julgo competente para tal, já que não sou historiadora mas o cotidiano do lugar está à vista de todos, todos os dias.
Tudo isso me faz lembrar do livro “Meninos da vida” de Pier Paolo Pasolini nos becos escuros em que aconteciam a vida... a vida lado B mas que na verdade é a vida vida, corrida, cotidiana, intensa, fluídica, necessária, óbvia e muitas vezes com encantos imperceptíveis ....

Embarcações da Ilha 

Um menino que se tornou homem


Pará pilotando a lancha
Pará, foi assim que ele se apresentou  e reafirmou: podem me chamar de Pará ... ele pilotou com carinho, amor e abnegação a lancha que fez a meia volta na Ilha e à ele que eu humildemente dedico essa coluna de hoje. Num momento do lindo passeio ele disse: Eu moro ali, perto da Lagoa Azul apontando com o dedo, alguns que estavam na lancha  disseram: nossa, que lindo você deve desfrutar dessa paisagem paradisíaca todos os dias quando chega à sua casa, Pará respondeu de forma rápida e eloquente: Todos os dias quando chego em casa já é noite e tão cansado estou que não vejo nada apenas quero dormir.
Obrigada Pará por seu carinho, amor e atenção e por ter me proporcionado um dos dias mais lindos de minha vida.... que paguei com dinheiro, mesmo consciente de que muito pouco daquilo ficaria para os meninos da Ilha....

Pará, vive e trabalha em Ilha grande, RJ
Num súbito instante o comum, cotidiano pode se tornar inusitado....


Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.

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