sexta-feira, 19 de setembro de 2014

METÁFORAS DE AUTORIA FEMININA.
































Nos últimos tempos, vem se desdobrando, no seio do grupo Meninas que Escrevem em Curitiba, intenso debate sobre o que significa ser mulher e ser escritora.  Apesar desse grupo não ter uma finalidade ou inserção acadêmicas, as polêmicas em seu interior  têm espelhado e recolocado grandes discussões ocorridas no campo dos Estudos Literários e Estudos Culturais, que vêm de longa data.  Discussões, aliás, que - pelo que podemos ver claramente aqui -, não têm nem terão ponto final tão cedo.  Na verdade, nem devem, pois remetem a dilemas cruciais da contemporaneidade: questões sobre a relação entre mulheres e feminismos, sobre a academia e o mundo da produção cultural e as mulheres, sobre as mulheres num mundo que tende – devagar e com muitas contradições – para um futuro pós-gênero (embora a maioria, investida  ainda em construções menos ambíguas do masculino e do feminino, o tema), a relação entre política e arte, estética e feminismo.








No livro Literature After Feminism, Rita Felski, crítica literária que admiro muito e que venho citando por aqui, aborda o teimoso debate com críticos literários de tendências variadas que defendem ou reproduzem a convicção de haver uma oposição entre preocupações estéticas e políticas na análise e avaliação de obras literárias.  Este tipo de argumento, ela assinala, tem sido muito sintomaticamente mobilizado em disputas sobre o cânone, utilizado muitas vezes por críticos  conservadores que promovem noções estáticas sobre o que torna uma obra “um clássico” e que defendem critérios estéticos universais e pouco historicizados.  Muito pacientemente, ela volta a estas disputas, afirmando que há sempre em toda produção literária conteúdo político;  critérios estéticos, por outro lado, não são a antítese de suas características mais "ideológicas", senão que  nos obrigam a pensar de formas complexas, não reducionistas (e.g.  o conteúdo “feminista” de uma obra nem legitima nem desqualifica  o valor de um poema, um conto ou um romance, seria apenas uma de suas facetas).  





Quanto a dúvidas relativas à escrita e autoria femininas, Felski também oferece estratégias que conduzem à complexificação do trabalho crítico.  Da sua própria leitura de contribuições críticas, identifica três metáforas ou alegorias que condensam abordagens utilizadas pela crítica feminista contemporânea,  que mais do que se referir a descrições empíricas de autoras e suas obras, refletem modos de interpretar o ser e fazer  das mulheres dentre as complexas teias-tramas de relações sociais e históricas,  Assim,  a  primeira metáfora, ou alegoria de autoria feminina que ela denomina de   the madwoman in the attic (“a louca no sótão),  é tomada do livro  homônimo das autoras  Sandra Gilbert and Susan Gubar (apud Felski), que no final dos anos 70 lançam este clássico  da crítica feminista.  Produto de um momento pioneiro na crítica feminista, trabalhos como estes eram muito influenciados pela Virginia Woolf, por sua noção de feminine sentences  e seu justificável lamento da  “ausência de uma tradição” de escrita feminina dentro do cânone literário.  Metáfora- denúncia da exclusão das mulheres das instituições de produção cultural, ainda peca por basear-se numa certa universalização do papel da senhora burguesa, cujos privilégios de classe paradoxalmente a dilaceravam,  ao confiná-la dentre os “roteiros estreitos” do seu gênero ( cf. Kehl). Nesse contexto, surge a noção da loucura ou histeria como resposta (inteligível) à negação de voz, imputando à mesma uma certa qualidade de agência.  Por outro lado, como parte dos esforços de visibilizar e valorizar a escrita feminina, algumas críticas da época também defendiam a ideia de existirem diferenças formais entre a escrita de mulheres e homens, reforçando desta maneira o discurso binário que hoje em dia em amplamente reconhecido como paradoxalmente  mantenedor de fronteiras e barreiras .




Contudo, há outras vertentes interpretativas que fazem parte desta história. Masquerading women, por exemplo, que coloca o gênero no terreno do performativo - contingente e fluído, por definição .  Embora esta forma interpretativa das críticas não a situa exclusivamente em obras mais recentes (muito pelo contrário!), é fato que hoje em dia qualquer generalização sobre como “homens” e “mulheres” são, ou como se manifestem literariamente, vira suspeita, ou pelo menos muito pouco convincente, em plenos tempos de desconstrução destas mesmas categorias.   De fato, a metáfora de gênero como baile de máscaras (como carnaval, como performance) ressoa na literatura pelo menos desde a mesma Virgínia Woolf escreveu Orlando, e outras autoras da mesma época -  e muitas mais, posteriormente-  produziram textos que subvertem o gênero, bem como na perspectiva que hoje encontra-se sintetizado no brilhante trabalho teórico da filósofa Judith Butler.

Felski promove ainda mais a des-universalização da categoria de escritora ao chamar nossa atenção para outra alegoria ou metáfora, a de Home girls.  Vejam bem: se a primeira metáfora discutida por Felski surge de um contexto de circunscrição de mulheres de camadas sociais privilegiados a um papel doméstico que produz o lar como prisão, para outras - as que pertenciam a comunidades raciais e étnicas marginalizadas ou hostilizadas, discriminadas, o lar poderia significar conforto, consolo ou refúgio. Pelo menos parcialmente, ou por vezes.  Isto parece ser o caso para  mulheres latinas e negras no caso dos  EUA, como vem sendo apontado também na sociologia e na história  (Cf. Jones; Cole;  Davis;  Smith; apud Adelman), desde várias décadas, por estudiosas que nos lembram que nos tempos da escravidão, ter um lar era um "privilégio" negado às mulheres negras escravizadas. Ou, como acontece hoje em dia nos países que mantêm cidades divididas entre enclaves étnico-raciais (como pode ser também na França ou na Espanha atualmente, ou em relação a comunidades indígenas no Brasil ou no México...), tanto o lar (principalmente, da família extensa) quanto o bairro ou outra estrutura comunitária pode se levantar como aconchego e proteção perante um mundo público que submete mulheres e homens de etnicidades discriminadas à hostilidade e agressão (física, simbólica).


Diante da diversidade da produção textual e das possibilidades interpretativas da atualidade, uma estratégia indutiva útil pode ser partir de obras singulares de autoria feminina para tentar descobrir como elas definem “ser mulher que escreve".  Por exemplo, em leitura recente do primeiro livro  da poeta Beat Hettie Jones, Drive, percebi como o  livro foi construído  em torno da metáfora central  “mulher ao volante”. Os poemas evocam constantemente a capacidade  das mulheres de pegar a estrada, ou de fazer a estrada.  Tematizam, nesse empreendimento,  tanto  a relação com o eu quanto com o outro, fato que  acredito ser de grande significância, pois no trabalho dela, como no de outras mulheres Beats, este elemento emerge e se impõe de maneira muito diferente do que no trabalho dos homens (como tão claro em Kerouac, por exemplo) –  grande ambivalência quanto às relações que permanecem ou que exigem compromisso!  Vejamos aqui apenas o primeiro poema, de abertura do livro, que acabei de traduzir:

Direção (Hard Drive)

No sábado os ursos de pelúcia flutuavam de novo
sobre o Major Deegan
dançando no plástico ao longo do corrimão da ponte
sob um céu meio nublado, meio azul
e havia nuvens brancas
chegando do oeste

o que talvez fosse suficiente
para alguém acostumado ao prazer
em pequenas dosagens

Porém mais tarde ao pôr do sol
dirigindo rumo ao norte pelo Saw Mill
no vento forte, com as nuvens grandes que flutuavam
por sobre a estrada como animais
mostrando orgulhosomente suas rosadas barrigas
num momento de luz intensa
vi uma casa tipo Edward Hopper
tão simultânea e extraordinariamente clara e escura
que eu chorei todo o caminho da Rota 22
aquelas lágrimas incontroláveis
 “como se o corpo chorasse”

e portanto,  mulheres jovens
eis aqui o dilema
em si a solução:

sempre fui ao mesmo tempo
mulher o suficiente para me comover até o pranto
e homem o suficiente
para pegar o carro e me mandar
em qualquer direção


Concluindo, apenas por hoje, gostaria de sugerir -  mais um vez, estimulada pelo texto da Felski - que já passamos da noção da "morte do autor" para um interesse no lugar da fala d@s enunciantes , que pode ser mais ou menos enraizado, mais ou menos móvel e instável – se produz na junção de relacões sócio-históricas como gênero, classe, raça/etnicidade, sexualidade,  posição numa geopolítica global, inserção numa geração, etc.  Isto fica claro na posição de Rita Felski e outros estudiosos e estudiosas da questão.  Por isto mesmo, Felski enfatiza que as metáforas que ela utiliza para pensar sobre autoria feminina e crítica feminista  representam apenas algumas das vastas possibilidades de representação de sujeitos-autoras.  As metáforas ou alegorias podem se tornar um problema, também, se  entendidas como prescrições fechadas sobre a questão da "autoria feminina".  Podemos pensar, junto com ela, quais outras metáforas seriam expressivas a partir das obras que lemos, estudamos e escrevemos.  Talvez algumas metáforas que emerjam de contextos “do sul”?  A pergunta fica aguardando a reflexão e a criatividade d@s que lêem esta minha pequena contribuição...
 
Imagens:  Miriam Adelman 

  • Referências.

    Adelman, M. (1997) Common Bonds? On the Intersection of Class, Race and Gender in the Lives of U.S.  Women.  Curitiba: Revista de Sociologia e Política #8. (pp 145-156)
    Felski, R. (2003)  Literature after  feminism. Chicago/London: University of Chicago Press
    Jones,  H (1998)  Drive.   New York: Hanging Loose Press.
    Kehl,  M.R. (1998) Deslocamentos do feminino:  a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago.


Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta e  - desde 2013-  aprendiz da arte fotográfica.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
Imagem:  Janaína Ina.

























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